sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

[o leitor]

O Leitor
The Reader, 2008
Stephen Daldry


É impressionante como irregularidade pode ser um fator capaz de praticamente arruinar um filme. Em dois terços de sua narrativa, O Leitor é um filme verdadeiramente excepcional. Na primeira parte, quando se desenrola o envolvimento dos personagens de David Kross (ótima revelação) e Kate Winslet, Stephen Daldry parece nos lembrar a todo momento que estamos diante de um cineasta de grande sensibilidade, responsável pelo belíssimo As Horas. Winslet surge magnífica, discreta na medida certa, dosando sua personagem com o mistério necessário para seu desenvolvimento posterior, e criando uma figura fascinante, ao mesmo tempo simples e irresistível, ao mesmo tempo que possui uma excelente química com Kross, com quem divide belas cenas de intimidade. Cenas, aliás, filmadas com delicadeza por Daldry, que conduz o roteiro de David Hare com talento, mantendo-nos presos e interessados pela trama e por seu par de protagonistas.
Em sua segunda parte, O Leitor consegue crescer ainda mais. Kross se sai bem sem a presença magnética de Winslet, que, quando finalmente ressurge, nos lembra novamente do tamanho de seu talento, revelando a complexidade de sua personagem somente para torná-la ainda mais fascinante. Suas cenas de julgamente são absurdamente poderosas, graças, principalmente, à atriz, capaz de transmitir toda a angústia e ignorância daquela mulher simplesmente com seus expressivos olhares. Além disso, Daldry e Hare elevam o filme a um outro patamar, ao inserir em sua narrativa a polêmica e delicada questão da expiação da culpa do Holocausto pelos alemães. O Leitor consegue contribuir significantemente nessa discussão, complexificando questões que frequentemente são tratadas com um simplismo absurdo. Até aqui, parecia estar diante do melhor trabalho da curta carreira de Daldry.
No entanto, quando entra em sua reta final, o filme cai imensamente de qualidade. Ralph Fiennes assume de vez o lugar de Kross, e não tem muito o que fazer com seu personagem, e Kate Winslet se resume a aparecer envelhecida, sem conseguir acrescentar muito à figura de Hannah Schmitz (ainda que continue aqui sendo a melhor coisa do filme). O Leitor apela, então, inexplicavelmente, para momentos melodramáticos, que em nada combinam com o que fora mostrado até então. Além do desnecessário reencontro entre os protagonistas, há um diálogo entre Fiennes e Lena Olin que chega a beirar o constrangedor, tamanho o artificialismo de tal cena (ainda que algo que a personagem de Olin diz em determinado momento, acerca da busca por catarse, seja profundamente válido para a proposta do filme e para as discussões acerca do tema por ele tratado). Fica a impressão de existem aqui dois filmes dentro de um só. De um lado, o melhor filme de Stephen Daldry. De outro, o pior.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

[quem quer ser um milionário?]

Quem Quer Ser um Milionário?
Slumdog Millionaire, 2008
Danny Boyle


Verdade seja dita: por mais que tenha sido responsável por um dos filmes mais adorados dos anos 90, Trainspotting, Danny Boyle nunca foi um gênio em seu ofício. É dono de uma carreira eclética e irregular, com alguns bons trabalhos (e outros nem tanto, como A Praia), mas que ainda tem como seu melhor seus dois primeiros longas, Cova Rasa e o já citado Trainspotting. Quem Quer Ser um Milionário?, apesar de todos os prêmios acumulados, só confirma isso: é um bom filme, com alguns momentos inspirados, mas que nunca consegue alcançar a genialidade.
O maior mérito de Boyle é conseguir transformar uma história ingênua de amor e superação em uma obra surpreendente, envolvente e mesmo original. Mesmo que imaginemos como tudo aquilo irá terminar, fica difícil não se envolver com a saga do protagonista Jamal Malik, e não torcer por seu sucesso no programa que dá título (no Brasil) ao filme. É bem verdade que aqui os devidos créditos têm de ser dados ao jovem Dev Patel, que vive Malik no presente. Carismático ao extremo, o ator constrói um personagem apaixonante em sua simplicidade e ingenuidade, e em sua obstinação por alcançar seus objetivos, impressionando pela espontaneidade de sua interpretação. Aliás, essa é a palavra perfeita para definir o trabalho de Patel: espontaneidade. O que leva à verossimilhança de seu personagem e, consequentemente, à imensa identificação do público com ele.
No entanto, Boyle também tem um papel fundamental na construção desse clima contagiante de Quem Quer Ser um Milionário?, na forma como conduz sua narrativa entrecortada por flashbacks sem soar irritante ou pretensioso, e, principalmente, na construção das sequências que se passam no show em si, onde a interação entre os personagens de Patel e Anil Kapoor é excepcional (a química entre os dois atores é absolutamente perfeita) e a tensão criada em torno das questões do programa, imensa. Na maior parte do tempo, são essas cenas que tornam o filme uma experiência tão deliciosa, o que revela o enorme êxito do diretor em transformar uma linguagem essencialmente televisiva (a dos quiz shows) em cinema de alta qualidade.
Boyle, o roteirista Simon Beaufoy, e o montador Chris Dickens também acertam em cheio na inserção dos flashbacks, sempre ocorrendo nos momentos exatos, sem que nenhum deles soe injustificável. Mas vale dizer que, se os primeiros flashbacks, mostrando a infância de Jamal e de seu irmão, são não menos que maravilhosos (são excepcionais as sequências da fuga dos meninos para a favela e do ataque contra os muçulmanos) conforme a narrativa se aproxima do presente a qualidade dessas sequências vai decaindo, muito devido à caracterização de alguns personagens (chega a ser irritante a necessidade de que a trama possua vilões cínicos e cruéis, e o último deles que surge em cena, o mafioso chefe de Salim, é caricatural ao extremo, numa composição bastante equivocada) e à má escolha de alguns atores (o intérprete de Salim na vida adulta, por exemplo, é muito fraco). Além disso, é inegável o uso excessivo de uma câmera inclinada, no intuito de passar um clima de nervosismo, que chega a irritar (é possível contar nos dedos as cenas em que a câmera está em sua posição tradicional) por mais que aqui seu uso seja bem mais justificável do que, por exemplo, no recente Dúvida.
Na verdade, me parece que o maior problema de Quem Quer Ser um Milionário? é o sem número de prêmios que o filme recebeu. Assistí-lo sob o peso de ser quase uma unanimidade entre os principais prêmios do cinema, acaba dando ao filme uma responsabilidade que ele não busca: é apenas uma pequena fábula, uma bela e inocente história de amor. E, por mais que possua um pano de fundo "sério", mostrando uma Índia que poucos querem ver (e há uma excelente cena que é sintomática disso, quando Jamal pergunta a um turista norte-americano que acaba de ter seu carro "depenado" por meninos da favela se ele não desejava conhecer a verdadeira Índia), isso não passa de pano de fundo, de uma visão light daquela realidade: o principal ali é Jamal Malik, sua participação no programa "Quem que ser um milionário?" e seu gigantesco amor por Latika. E fica difícil não enxergar isso após a empolgante cena de dança dos créditos finais.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Oscar 2009: apostas

[oscar 2009: apostas]

Chegou a hora das minhas apostas para o Oscar 2009, cuja cerimônia será nesse domingo. Vou seguir a maior parte das previsões, não acho que haverá grandes surpresas nesse ano, em uma seleção de filmes bem mais fraca do que a do ano passado. Vamos ver quantos eu consigo acertar, em um ano em que, depois de muito tempo, não assistirei à entrega dos prêmios pela TV, graças aos caprichos da Rede Globo. Enfim, controlando minha revolta, essas são minhas apostas:


Melhor Filme: Quem Quer Ser um Milionário?


Melhor Diretor: Danny Boyle (Quem Quer Ser um Milionário?)

Melhor Ator: Mickey Rourke (O Lutador)

Melhor Atriz: Kate Winslet (O Leitor)

Melhor Ator Coadjuvante: Heath Ledger (Batman - O Cavaleiro das Trevas)

Melhor Atriz Coadjuvante: Penélope Cruz (Vicky Cristina Barcelona)

Melhor Roteiro Adaptado: Simon Beaufoy (Quem Quer Ser um Milionário?)

Melhor Roteiro Original: Dustin Lance Black (Milk)

Melhor Filme Estrangeiro: Entre les Murs

Melhor Documentário: Man on Wire

Melhor Longa de Animação: Wall-E

Melhor Fotografia: O Curioso Caso de Benjamin Button

Melhor Edição: Quem Quer Ser um Milionário?

Melhor Figurino: A Duquesa

Melhor Direção de Arte: O Curioso Caso de Benjamin Button

Melhores Efeitos Especiais: O Curioso Caso de Benjamin Button

Melhor Maquiagem: O Curioso Caso de Benjamin Button

Melhor Som: Batman - O Cavaleiro das Trevas

Melhor Edição de Som: Batman - O Cavaleiro das Trevas

Melhor Trilha Sonora: Quem Quer Ser um Milionário?

Melhor Canção: "Jai Ho" (Quem Quer Ser um Milionário?)



6 Oscars: Quem Quer Ser um Milionário?
4 Oscars: O Curioso Caso de Benjamin Button
3 Oscars: Batman - O Cavaleiro das Trevas
1 Oscar: Milk, O Lutador, O Leitor, Vicky Cristina Barcelona, Wall-E, A Duquesa, Entre les Murs, Man on Wire

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Trailer

[bastardos inglórios]

Juro que não estava com grandes expectativas quanto ao novo filme de Quentin Tarantino, o eternamente adiado Inglourious Basterds (que ganhou data de estréia no Brasil - 23 de outubro - e o "surpreendente" título em português de Bastardos Inglórios). Mas bastou assistir a esse teaser para que se tornasse o filme mais aguardado por mim para esse ano. Genial.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

No cinema: Operação Valquíria

[operação valquíria]

Operação Valquíria
Valkyrie, 2008
Bryan Singer


Em Operação Valquíria, o final é o que menos importa - afinal, basta conhecer minimamente a história do século XX para saber como Adolf Hitler morreu. O que importa é o miolo, a trama criada por Bryan Singer e pelo roteirista Christopher McQuarrie (mesma dupla do inesquecível Os Suspeitos). No entanto, esse miolo não consegue ser tão saboroso quanto se esperava desse retorno de Singer a um cinema distante de adaptações de quadrinhos.

Talvez o grande problema do filme seja o pouco tempo gasto com o desenvolvimento de seus personagens. Mal a trama começa, o diretor já mergulha na conspiração para assassinar Hitler, pouco se sabendo sobre as figuras por trás de tal plano. No caso do protagonista, Claus von Stauffenberg, vivido com competência por Tom Cruise, isso até funciona, já que tal personagem fascina mais pelo mistério que o envolve, por sua expressão contida e por sua obstinação em acabar com o poder do Führer. No entanto, Singer acrescenta algumas cenas de Stauffenberg com sua família, numa tentativa de humanizá-lo que acaba se rendendo a uma série de clichês (e é uma pena que a excepcional Carice van Houten seja completamente subaproveitada aqui). Esse pouco desenvolvimento dos personagens da trama acaba por abrir brecha para uma leitura estereotipada de suas personalidades e motivações, especialmente na primeira parte de Operação Valquíria, vangloriando os conspiradores e demonizando seus inimigos de forma até primária.
É preciso reconhecer, porém, que, a partir de um certo momento, quando o tal plano começa a ser colocado em ação, o filme cresce absurdamente. Como Os Suspeitos, e mesmo O Aprendiz, já haviam demonstrado, Singer sabe como poucos cineastas da atualidade criar e conduzir um clima de suspense, e aqui ele não decepciona: a forma como o diretor destrincha os meticulosos detalhes do plano, explorando à perfeição a tensão e o medo que envolvem seus autores, e como cria um suspense que beira o insuportável acerca do sucesso ou não dos conspiradores, mesmo que saibamos qual foi o resultado, beira o brilhantismo. Fica difícil não torcer pelo personagem de Cruise e por seus aliados, mesmo que saibamos tão pouco destes, e isso graças à grandeza do talento do diretor. É inegável a contribuição de Singer aos filmes baseados em HQ's (afinal, foram dois ótimos longas, X-Men - O Filme e Superman - O Retorno, e uma pequena obra-prima, X-Men 2). Mas, assistindo a Operação Valquíria, também se torna inegável a falta que ele fazia ao cinema de suspense.

sábado, 14 de fevereiro de 2009

No cinema: Dúvida

[dúvida]

Dúvida
Doubt, 2008
John Patrick Shanley


O título da peça teatral em que Dúvida se inspira é Doubt: A Parable, ou seja, Dúvida: Uma Parábola. Faz todo sentido. Esse filme de John Patrick Shanley (também autor da referida peça) mantém muitas das características teatrais de sua origem, e possui um formato bem próximo de uma parábola, aliás, uma marcante parábola acerca da intolerância e da força de uma dúvida, inabalável mesmo diante da mais aparente certeza.
Como uma boa peça, Dúvida se alicerça fortemente em seu texto e em seus atores. O primeiro, também criação de Shanley, é poderoso, ainda que dono de pequenas falhas (a necessidade que o roteiro possui de deixar incertezas pairando no ar, por mais que seja coerente com a trama do filme, acaba atrapalhando o desenvolvimento dramático de determinados personagens). Traz uma série de passagens marcantes, com diálogos cortantes e cenas poderosas: as três sequências dos sermões do padre vivido por Philip Seymour Hoffman são excepcionais, especialmente a segunda, com a metáfora do travesseiro; as conversas entre Hoffman e Meryl Streep, quando a acusação de pedofilia envolvendo o primeiro é discutida, são carregadas de uma tensão que beira o insuportável, e onde muito da personalidade destes personagens é trazido à tona; e há, por fim, uma impressionante discussão entre Streep e Viola Davis, dura, triste e impactante, que só aumenta a força e a complexidade do filme e de seus personagens.
Já ficou clara aqui a dependência que Dúvida possui de seu telentoso elenco (basta observar que, num parágrafo onde se analisa o texto do filme, seus atores foram citados diversas vezes). E ele é absolutamente impecável. Fica difícil destacar alguém, mas as presenças de Philip Seymour Hoffman e Viola Davis talvez marquem mais, devido à força de seus personagens, ainda que Meryl Streep e Amy Adams também impressionem: se os dois primeiros são donos das cenas mais fortes do filme e das figuras mais complexas de Dúvida, Streep e Adams compõem suas personagens com perfeição, encarnando duas mulheres que são praticamente opostas, mas que acabam se completando.
Dúvida acaba pecando, por outro lado, pelas mesmas mãos responsáveis por alguns de seus acertos: excelente como roteirista, John Patrick Shanley acaba cometendo alguns exageros totalmente desnecessários como diretor (como as inexplicáveis tomadas em que a câmera se encontra inclinada, que dão um ar de filme televisivo, quase amador, para o longa), que acabam comprometendo o resultado final de seu trabalho. Talvez fosse acertada aqui a escolha de um outro diretor para o filme, mais experiente na função, capaz de transformar Dúvida na obra-prima que muitas vezes parece ser anunciada, mas que acaba não se concretizando.

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

A Troca



Com A Troca, Clint Eastwood se aproximou bastante de um cinema norte-americano "à moda antiga", semelhante a grandes dramas da Hollywood de outrora. Há também ecos de um cinema noir e algumas semelhanças com alguns dos pesados dramas comandados pelo diretor recentemente, como Sobre Meninos e Lobos (principalmente na segunda parte da narrativa, quando entra na trama a investigação policial acerca de um possível serial killer, assassino de crianças).

No entanto, esse excesso de referências acaba atrapalhando um pouco a empreitada de Eastwood, transformando A Troca em uma obra excessivamente irregular. É especialmente como drama de uma mãe em busca do filho desaparecido que o filme comete alguns pecados. Angelina Jolie está perfeita no papel de Christine Collins, compondo sua personagem no tom exato, entre o exagero das interpretações das atrizes deste tipo de drama à antiga e a sutileza de determinadas cenas, o que acaba tornando sua obstinação tristemente real. Assim como Meryl Streep (As Pontes de Madison) e Hilary Swank (Menina de Ouro), Jolie rende bastante nas mãos de Eastwood: o próprio trabalho do diretor acaba ofuscado pelo desempenho de sua protagonista, verdadeira dona do filme. Entretanto, chega a ser irritante a condução da história de Collins por Eastwood e pelo roteirista J. Michael Straczynski, com clichê atrás de clichê (a cena do eletrochoque é um ótimo exemplo disso). O mesmo vale para o excesso de coadjuvantes estereotipados: o chefe de polícia malvado e corrupto, o médico cruel, o pastor bondoso e corajoso (vivido por um deslocado John Malkovich), o psicopata doentio e amalucado que não consegue conter seus risos nervosos etc.

Por outro lado, Eastwood permeia a narrativa com cenas muito boas, nos lembrando de que estamos diante de uma obra sua: todos os momentos envolvendo os crimes do serial killer são tensos e envolventes na medida certa e há a excelente cena de uma execução na forca, dona de um tom incômodo, amargo, bastante apropriado e coerente com o cinema do diretor. Além de muitos momentos protagonizados por Jolie, principalmente um, próximo ao final, envolvendo o depoimento de um menino desaparecido e encontrado pela polícia. Momento, aliás, perfeito para o encerramento do filme, com o olhar emocionado da protagonista, e que elevaria a qualidade de A Troca. No entanto, o diretor prefere incluir uma cena posterior, desnecessária, na qual o que não precisava ser dito é dito. E que sintetiza bem a irregularidade deste filme menor de Eastwood.


A Troca 
Changeling, 2008
Clint Eastwood

sábado, 7 de fevereiro de 2009

No cinema: O Lutador

[o lutador]

O Lutador
The Wrestler, 2008
Darren Aronofsky


Assistir a O Lutador não é uma experiência tranquila, indelével. Não que o filme seja forte, no sentido de possuir cenas extremamente violentas ou impactantes, como, por exemplo, o excelente Réquiem para Um Sonho, do mesmo Darren Aronofsky. Na verdade, boa parte da força que o longa possui, da sua capacidade de impedir que o espectador simplesmente apague da memória o que acabou de ver, é responsabilidade clara e óbvia de um homem: Mickey Rourke.
A essa altura já virou clichê elogiar sua interpretação, relembrar sua promissora carreira destruída por seus excessos e caprichos, mas sua presença em cena é realmente espetacular. Praticamente interpretando a si próprio, Rourke coloca na tela um personagem absurdamente simplório, sofrido e, justamente por isso, cativante. Ao mesmo tempo que é digno de pena, Randy "The Ram" Robinson é, assim como Rourke, uma vítima de sua própria estupidez (e a cena em que percebe o erro que cometeu ao se deixar levar para uma noitada regada a drogas e sexo é sintomática disso), o que o torna uma figura profundamente comovente. Terno e bruto, Rourke/Randy impressiona com sua magnética presença na tela, e suas companheiras de cena, Marisa Tomei e Evan Rachel Wood pouco podem fazer diante dela. Entretanto, ao mesmo tempo que interpreta a si próprio, o ator dá mostras de seu brilhantismo ao verdadeiramente compor um personagem, e ao revelar, em pequenos gestos, a complexidade dramática deste. Vale observar, por exemplo, a expressão contida, passiva de Rourke ao ser agredido verbalmente pela personagem de Wood: o ator passa com perfeição os sentimentos de um homem destruído, maltratado pela vida, e que vê desaparecer ali sua última esperança de felicidade, o que acaba por comunicar-nos também o que virá a seguir, as consequências trágicas daquela briga. Esse é o momento mais comovente de um filme que, na verdade, comove, do início ao fim, e isso graças ao trabalho minimalista de seu protagonista, um grande ator, como sempre se soube.
No entanto, nem só de Mickey Rourke vive O Lutador. Por trás de sua presença avassaladora, existe o sujeito responsável por canalizar o turbilhão de emoções que é o ator, algo que Darren Aronofsky consegue fazer primorosamente. Se o diretor havia pecado pelo excesso de pretensão em seu último filme, o subestimado Fonte da Vida, aqui Aronofsky faz exatamente o oposto: um filme absurdamente simples. E, por isso mesmo, perfeito. Aronofsky percebe que diante do desempenho monstruoso de Rourke não caberiam exageros estéticos ou inovações narrativas, e simplesmente sai do caminho, deixando seu astro brilhar. E, por essa sua visão, o diretor brilha junto, e entrega um filme simples, singelo e de uma beleza gigantesca. Fui ao cinema esperando algo próximo ao recente, e ótimo, Rocky Balboa. Saí do cinema me lembrando de Touro Indomável.

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Alguns filmes - Janeiro

[alguns filmes - janeiro]

Agente 86
Get Smart, 2008
Peter Segal


Um Mundo Perfeito
A Perfect World, 1993
Clint Eastwood


O Último Beijo
L'Ultimo Baccio, 2001
Gabriele Muccino


Na Mira do Chefe
In Bruges, 2008
Martin McDonagh


Fome Animal
Dead Alive, 1992
Peter Jackson


eXistenZ
eXistenZ, 1999
David Cronenberg


Gêmeos - Mórbida Semelhança
Dead Ringers, 1988
David Cronenberg


A Questão Humana
La Question Humaine, 2007
Nicolas Klotz


Aguirre, a Cólera dos Deuses
Aguirre, der Zorn Gottes, 1972
Werner Herzog


Persépolis
Persepolis, 2007
Marjane Satrapi & Vincent Paronnaud



Ainda que muitos gostem, não consigo ver nada demais nessa versão cinematográfica de Agente 86. Steve Carrell e Anne Hathaway estão muito bem sim, e suas gags até funcionam em alguns momentos (especialmente na primeira parte do longa), mas, em sua maioria, esse é um filme bobo, exageradamente despretensioso e sem um mínimo de acidez. Ou seja, é o protótipo perfeito da comédia norte-americana. No fim das contas, não há grandes diferenças entre Agente 86 e bombas como, por exemplo, a nova versão de A Pantera Cor-de-Rosa, com Steve Martin. São ambas comédias de "espionagem", com cenas de ação pouco inspiradas (especialmente em seu epílogo, irritante de tão exagerado e explosivo, quando Maxwell Smart é transformado em apenas mais um herói de filmes de ação) e com protagonistas atrapalhados mas supostamente competentes e feitos para conquistar a platéia. Carrell se sai melhor do que Martin, mas o filme não consegue repetir seu feito. Talvez funcione melhor com quem já acompanhou a série. Como esse não é meu caso, Agente 86 foi somente uma perda de tempo.
Um Mundo Perfeito é o típico filme de Clint Eastwood cheio de clichês, mas que possui uma humanidade exacerbada, e grande complexidade nas entrelinhas. Poderia ser mais uma obra-prima na carreira do ator/diretor, mas derrapa, principalmente, por ser dois filmes em um. Enquanto Eastwood está fora de cena, focando-se na fuga do personagem de Kevin Costner (muito bem) e em sua relação com o menino feito de refém (o bom T.J. Lowther), Um Mundo Perfeito é brilhante. Sensível, terno, mas ao mesmo tempo violento, e profundamente honesto. No entanto, há a perseguição empreendida pelo policial vivido pelo próprio Eastwood, e aqui os clichês se amontoam, e nada soa verdadeiro. Clint está mal em cena, interpretando mal o mesmo papel de sempre, e há um ainda uma apática Laura Dern e um agente do FBI mau caráter, que se torna um vilão meio despropositado. É um verdadeiro desperdício, em um filme que possui momentos tão maravilhosos, e que culminam com a excepcional sequência da estadia dos personagens de Costner e de Lowther na casa de uma família negra, onde Eastwood deixa explícito novamente seu imenso talento dramático.
O Último Beijo é um filme encantador por sua simplicidade, pela forma como trata seus personagens honestamente e por sua enorme capacidade em emocionar e divertir sem ser forçado. No entanto, o maior mérito do filme está no timing de Gabriele Muccino para capturar com perfeição as angustias e ansiedades de um grupo de jovens homens, vivendo no limiar entre a juventude e a vida adulta. É verdadeiramente impressionante como tudo em O Último Beijo, os conflitos, os amores, as traições e os sentimentos soam profundamente reais, mesmo que já explorados à exaustão em diversos longas. O que faz a diferença é a abordagem sincera, simples e despretensiosa de Muccino (algo que ele também alcançaria posteriormente no belo À Procura da Felicidade, derrapando logo depois, justamente por ser demasiadamente pretensioso, em Sete Vidas), que dá ao filme um tom divertido, mas, ao mesmo tempo, estranhamente melancólico: sabemos que aquelas dúvidas, desejos reprimidos e amores frustrados mostrados pelo diretor constituem uma parte importante de nossa existência, e poderiam, com o perdão do clichê, acontecer com qualquer um de nós (isso quando já não aconteceram). E O Último Beijo surpreende ainda por sua maturidade em seu final, pela forma como os personagens promovem escolhas coerentes com suas personalidades, sem grandes catarses ou reviravoltas. E ainda por contar com uma cena final irônica e brilhante. Um pequeno clássico.
Talvez não exista sensação melhor ligada ao cinema do que a de surpresa. É muito bom quando um filme do qual se espera muito atende a todas essas expectativas, mas melhor ainda é quando não se espera nada, ou muito pouco, de um filme e acaba-se deparando com uma obra-prima. E Na Mira do Chefe (péssimo título em português, vale dizer, que dá ao filme um tom exageradamente cômico, que ele não possui) promove essa indescritível sensação. Num primeiro momento, tem-se a impressão de estar diante de mais uma comédia de ação, no estilo Máquina Mortífera e afins, onde uma dupla (tudo bem que aqui estamos falando de dois criminosos, e não de policiais) que não se entende se vê obrigada a conviver. No entanto, por um lado, tem-se aqui em cena Brendan Gleeson e Colin Farrell em desempenhos inspirados. Ambos vão muito além do estereótipo inicial (o matador experiente conscencioso e paciente; o iniciante, jovem e arredio), criando duas figuras absolutamente encantadoras em sua complexidade. Talvez Farrell se destaque mais, por possuir mais tempo em cena e por compor um personagem que, ao mesmo tempo que carrega muitas de suas características pessoais (o que o torna mais verdadeiro), é completamente inusitado na carreira do ator; no entanto, Gleeson é o responsável por alguns dos melhores momentos do filme e, principalmente, pelo mais emocional e impactante deles, no topo de uma torre. E há ainda Ralph Fiennes, curto, grosso e genial. Por outro lado, há de se valorizar a figura do diretor e roteirista Martin McDonagh. A maneira como esse estreante em longa-metragens (mas já vencedor do Oscar, pelo curta Six Shooter) conduz sua trama, transformando-a, com imensa naturalidade, de uma aparente comédia de ação como outra qualquer em um drama extremamente melancólico e emocionante, é simplesmente brilhante. Tão brilhante quanto os momentos finais de Na Mira do Chefe, onde algumas coincidências tragicômicas encaminham o filme para um epílogo muito bem sacado, e, principalmente, para uma profunda e poderosa reflexão sobre a morte, e sobre o poder que a vontade de permanecermos vivos pode exercer sobre esta. Ou não.
É no mínimo estranho assistir a Fome Animal hoje em dia, tendo consciência dos filmes que Peter Jackson faria posteriormente. Tudo no filme é absolutamente e absurdamente mal feito, tosco e repugnante, mas, talvez justamente por isso, ótimo. Jackson, muito antes da fama (e de filmes sérios como Almas Gêmeas ou grandiosos como O Senhor dos Anéis e King Kong), filma com uma paixão transbordante a história do rapaz tímido e reprimido pela mãe que é obrigado a lidar com a invasão da sua cidade por um vírus que transforma os habitantes em zumbis. Na verdade, a história é um fiapo, uma mera desculpa para o diretor encher a tela com cenas nojentas e exageradas, todas filmadas toscamente. Não é possível, e nem pertinente, cobrar muito de um filme como Fome Animal, feito quase amadoramente. Mas é possível captar seu espírito genuinamente trash, que cativa e diverte. Assim como é possível vislumbrar, em alguns momentos, o gênio que se revelaria posteriormente (a sequência do padre lutando com os zumbis é particularmente inspirada).
eXistenZ e Gêmeos - Mórbida Semelhança são dois filmes de David Cronenberg diferentes em muitos aspectos, mas que compartilham entre si, e com outros trabalhos do diretor, um elemento em particular: a bizarrice. No entanto, em ambos os casos, assim como em muitos outros filmes de Cronenberg, tal elemento não soa, em nenhum momento, gratuito: o bizarro, em Cronenberg, é, de certa forma, natural. eXistenZ é um filme menor do diretor, sem grandes pretensões. Nele, a bizarrice aparece ligada às imagens criadas por Cronenberg (os jogos que parecem orgânicos, feitos de carne, é o melhor exemplo disso), para apresentar um mundo distópico onde os videogames tomaram o lugar da vida real. O diretor trabalha muito bem as constantes confusões entre realidade e jogo, insere algumas metáforas sexuais explícitas na narrativa e arranca boas atuações de sua dupla de protagonistas, Jude Law e Jennifer Jason Leigh, além de ter algumas sacadas visuais muito boas, como a arma feita de ossos (e os já citados consoles orgânicos). E o final, em aberto, é totalmente coerente com a proposta desse pequeno filme de David Cronenberg, que merece ser mais visto. Já Gêmeos - Mórbida Semelhança é um trabalho mais sério, com maior carga dramática, mas não menos estranho. Aqui, o bizarro está na história em si, de dois irmãos gêmeos ginecologistas que vivem quase simbioticamente, e Cronenberg a conduz com extrema elegância, tornando aqueles personagens duramente reais, tristes e sofridos, ao mesmo tempo que fascinantes. Obviamente, há aqui a imensa contribuição de Jeremy Irons, provavelmente no melhor desempenho de sua carreira. O ator compõe, com brilhantismo, dois homens de personalidades completamente diversas, sem, no entanto, descambar para estereótipos, e comove verdadeiramente com o drama dos dois, especialmente do mais "fraco" deles, Beverly. É ao mesmo tempo assustadora e fascinante a atuação de Irons, assim como o é a forma como os irmãos revelam a dependência mútua que possuem. Cronenberg, consciente da força da história contada, não promove grandes novidades narrativas, mantendo-se distante, mas com seu costumeiro talento para tornar o bizarro real. É um dos melhores filmes da carreira do diretor canadense.
Há um bom tempo não via um filme tão denso, pesado e complexo como esse A Questão Humana. A princípio, imaginava uma obra ao estilo do maravilhoso Conduta de Risco, com um funcionário de uma mega-corporação tomando "consciência" do que sua empresa representa e lutando contra o "sistema", ao mesmo tempo que um outro é designado para controlá-lo, e acaba se envolvendo também nessa luta. No entanto, o filme de Nicolas Klotz acaba tomando outro caminho, não menos interessante. A Questão Humana é, na verdade, uma poderosa investigação acerca da força que o passado e que as grandes estruturas provenientes deste e que compõem a realidade presente exercem sobre cada ser humano. No entanto, Klotz não é, em nenhum momento, esquemático, didático ou maniqueísta. O diretor gruda em seu protagonista, vivido pelo magistral Mathieu Amalric, e leva o espectador a descobrir aos poucos, de forma confuso e não-linear, a presença de uma herança histórica de imensa força na realidade do capitalismo atual, e na forma como organizamos nossas vidas nas sociedades contemporâneas, especialmente do Ocidente. E verdade seja dita: Klotz é duro em suas brilhantes conclusões, ao aproximar a racionalidade tecnocrata do capitalismo liberal com um dos maiores crimes que a humanidade já viu. Tais conclusões são absolutamente coerentes com a proposta do filme, e o diretor é duro como deve ser, afinal de contas ele não está batendo em um alvo fraco, que possa ser considerado uma vítima. Genial.
Werner Herzog sabe, como poucos, abordar o confronto entre homem e natureza, e Aguirre, a Cólera dos Deuses é mais um excelente exemplo disso. Assim como no posterior Fitzcarraldo, o cineasta alemão submerge numa história passada na América do Sul, nesse caso, a saga de Dom Lope de Aguirre, conquistador espanhol do século XVI que embrenhou-se pelas selvas do continente na busca da mítica cidade de El Dorado. E mais uma vez Herzog entrega uma abordagem fascinante, ainda que também se repita o incômodo em ver todos os personagens, supostamente espanhóis, falando alemão (e, ainda por cima, um alemão dublado, o que acaba diminuindo a força de algumas interpretações). Fascinante por fugir da obviedade, por optar pelo silêncio e pela força das imagens da natureza, e por criar um protagonista assustador e ao mesmo tempo apaixonante, interpretado por um espetacular Klaus Kinski. Não é um filme fácil de ser assistido, apesar de sua curta duração, principalmente por sua natureza essencialmente contemplativa, pouco intrusiva na história que está sendo contada. Mas é justamente desse seu silêncio quase absoluto que Aguirre, a Cólera dos Deuses extrai seu poder de impacto e se torna a experiência assustadora que é.
Esperava um pouco mais de Persépolis. É uma animação adulta, com temática e abordagem adultas, mas privada, em alguns momentos, de maturidade. Tem uma proposta interessante e alguns momentos verdadeiramente inspirados (toda a tensão política iraniana, as manifestações, a conversa entre Deus e Marx), além de contar com uma protagonista dona de uma história de vida extremamente rica. No entanto, tal história é contada de forma exageradamente episódica, há pouca emoção real nos acontecimentos da vida de Marjane Satrapi mostrados em Persépolis, eles simplesmente vão se acumulando diante de nossos olhos, sem gerar grande envolvimento ou comoção. Pouco nos preocupamos, verdadeiramente, com o destino da personagem, o que acaba sendo um pecado, e todo o sofrimento de sua jornada não consegue se tornar palpável. Ao menos, o filme acerta no tom melancólico que predomina em seus momentos finais, e que definem com competência a sensação de não possuir um lugar no mundo, além de ser, esteticamente, um primor.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

em Série ...

[lost - quarta temporada]

Lost - 4ª Temporada
Lost - The Fourth Season, 2008
J.J. Abrams & Damon Lindelof & Jeffrey Lieber



Aproveitando sua recente exibição na TV aberta, e o lançamento de uma nova temporada nos EUA, aqui estou eu comentando a quarta temporada de Lost. É bem verdade que, passados tantos episódios da série, esta já não consegue, em muitos momentos, demonstrar o fôlego e a genialidade que possuía nos seus dois primeiros anos e, para ser justo, nos últimos episódios da terceira temporada. Mesmo assim, Lost mantém seu charme.
Nessa quarta temporada, boa parte do mistério da ilha e de seus habitantes caminham para uma (aparente?) solução, o que, se por um lado é bom, já que nos priva de mais enrolações, por outro não deixa de ser frustrante, especialmente ao percebermos que estamos diante de respostas muito mais mundanas do que se poderia imaginar (como a trama envolvendo a guerra pela ilha, entre duas poderosas figuras), ainda que muitos acontecimentos "sobrenaturais" insistam em acontecer e em nos instigar (como, por exemplo, a história de "mover a ilha"). Outro ponto que gera resultados ambíguos é a utilização dos flashforwards, que, se pegaram a todos de surpresa no brilhante último episódio da terceira temporada, aqui já não conseguem mais repetir tal efeito, caindo na banalidade. À exceção, obviamente, de um episódio específico, "The Constant", estrelado por um dos melhores personagens da série, Desmond. Nele, o diretor Jack Bender alterna com brilhantismo flashbacks, "presente" e flashforwards, colocando novamente em cena um tema muito grato à Lost, e que geralmente gera excelentes episódios: a viagem no tempo. Tal episódio é conduzido de uma forma que beira o inacreditável, e é concluído com um momento de profunda emoção. É, de longe, o melhor momento dessa temporada.
De resto, há momentos muito bons (a coragem de matar diversos personagens, um Michael Emerson cada vez mais assustador como Benjamin Linus, e o final, novamente intrigante e provocativo) alternados com outros nem tanto, como o aguardado, mas mal conduzido, retorno de um personagem ausente desde a segunda temporada, novos personagens em geral pouco interessantes, especialmente o físico vivido por um Jeremy Davies meio que repetindo o papel amalucado de sempre, e o surgimento de um vilão que beira o caricatural (interpretado por Kevin Durand). No entanto, é uma temporada digna, que foge de enrolações e que serve como uma ótima ponte para os momentos finais da série que estão por vir.