quarta-feira, 1 de abril de 2009

[o casamento de rachel]

O Casamento de Rachel
Rachel Getting Married, 2008
Jonathan Demme


Acho Jonathan Demme um cineasta admirável (e pouco valorizado, ainda que seja um vencedor do Oscar, e responsável por um dos maiores clássicos do cinema contemporâneo), especialmente me sua capacidade em transitar entre gêneros sem o menor desconforto. Na verdade, mais do que capacidade, chamaria de inata inquietação que o diretor produz, que o faz ir de um thriller policial com cunho psicológico (O Silêncio dos Inocentes) para um drama de tribunal sobre o preconceito àqueles que contraíram o vírus da AIDS (Filadélfia), deste para um drama sobre negros nos EUA pós-abolição da escravidão (Bem-Amada) e deste para duas refilmagens de clássicos do cinema norte-americano (O Segredo de Charlie e Sob o Domínio do Mal). Sem contar as comédias amalucadas do início de sua carreira (sou fã de Totalmente Selvagem), e seus recentes documentários. E se alguém ainda duvida da versatilidade de Demme, basta assistir ao seu mais recente trabalho, O Casamento de Rachel.
É provável que, se não contasse com alguns rostos conhecidos, como Anne Hathaway e Debra Winger, algum espectador desprevenido acreditasse estar diante de um exemplar do movimento Dogma 95. Isso porque O Casamento de Rachel segue vários dos princípios pregados pelos cineastas nórdicos que criaram tal movimento, como a câmera na mão, sempre inquieta, a fotografia descuidada, as interpretações naturalistas do elenco, sempre parecendo improvisadas (e, por isso mesmo, "reais"), e a não-utilização de trilha sonora (todas as músicas escutadas no filme fazem parte da narrativa, são tocadas ou cantadas por seus personagens). Além disso, a trama de O Casamento de Rachel, e o desenrolar dos acontecimentos envolvendo seus personagens, lembrar um pouco o estupendo Festa de Família, de Thomas Virtenberg, mais famoso e premiado exemplar do Dogma 95. No entanto, o filme consegue funcionar absurdamente, independentemente dessas comparações, e assusta pela forma como Demme transita com naturalidade nessa diferente maneira de filmar.
Por mais que seja melhor cuidado esteticamente, e menos impactante, do que Festa de Família, O Casamento de Rachel consegue ser um filme angustiante, e dramaticamente poderoso. Para isso, depende imensamente de seu elenco, que não decepciona. De uma impressionante e surpreendente Anne Hathaway, a um maravilhoso Bill Irwin (que merecia ter sido lembrado nas premiações das quais o filme participou de alguma forma), passando por uma estonteante Rosemarie DeWitt (outra pouco valorizada nas últimas premiações cinematográficas) e uma Debra Winger, ainda bela, e contundente em cena, mesmo que com uma participação pequena, O Casamento de Rachel é um desfile e interpretações poderosas e exatas. Hathaway é o destaque absoluto, com o misto de sofrimento e necessidade de ser o centro das atenções de sua excelente personagem. Acho difícil que alguém imaginasse existir uma atriz desse calibre por trás da jovem protagonista de filmes da Disney, e de comédias legais, mas inofensivas, como O Diabo Veste Prada (e mesmo sua participação na obra-prima Brokeback Mountain, apagada, não dava pistas desse talento gigantesco). No entanto, Irwin também rouba a cena em algumas de suas participações, compondo uma figura comovente, em sua obrigação de ser o mediador das brigas de suas filhas, sendo obrigado a sufocar todos os traumas provenientes de uma família tão complicada.
Mas o que mais chama a atenção em O Casamento de Rachel é mesmo Jonathan Demme. É brilhante a forma como ele se apropria de uma linguagem cinematográfica nova em sua carreira, para alcançar seus propósitos, e para transformar aquele fim de semana na vida daquele grupo de personagens em uma experiência angustiante, que parece, em alguns momentos, interminável, sendo a festa do casamento o caso mais sintomático disso, com aquela quantidade de celebrações, dos mais diversos tipos, exaurido profundamente o espectador (e que me lembrou, de alguma forma, o epílogo do filme Exílios, de Tony Gatlif, com sua celebração extática impressionante). E é impactante como o diretor faz de um final supostamente up, já que passando-se em um momento de alegria, um retrato amargo e triste do quanto aquelas pessoas ainda guardam mágoas umas das outras. Trabalho de mestre.

4 comentários:

Bruno disse...

Descrição interessante que vc fez deste filme... e as "comparações", ou melhor, as lembranças que O Casamento de Rachel lhe trouxe, como o espetacular Festa de Família me chamaram a atenção. Só venho lendo textos bons sobre este último filme do Jonathan Demme, tentarei assisti-lo em breve. Abraço!

Rafael Carvalho disse...

É incrível mesmo a capacidade de reinvenção do Demme. O Casamento de Rachel não se parece com nada que o diretor fez anteriormente, mas o filme possui um sabor agridoce, construído de forma brilhante e intenso. Só não vejo tanto de Dogma 95 no filme, e mais de um tipo de cinema independente norte-americano afeito a câmera na mão e dramas familiares limites. De qualquer forma, a narrativa sabe ser densa o suficiente, sem soar pesada. As mágoas dos personagens estão escondidas sob uma fina camada de felicidade momentânea.

Anne Hathaway está fenomenal no filme, era minha preferida dentre as indicadas ao Oscar e concordo que é um talento recém-descoberto. Se ela continuar fazendo esses filminhos meis-boca e idiotas em Hollywood, ela vai se queimar total. Rosemarie DeWitt, além de linda de morrer, está ótima.

Wallace Andrioli Guedes disse...

Assista, Bruno, vale a pena. É mais um filme que merecia ter tido maior destaque nessa safra do último Oscar.
Rafael, eu já vejo semelhanças com Dogma 95 sim, e especialmente com o Festa de Família, por motivos bem óbvios. Quanto ao elenco, concordo plenamente contigo, a DeWitt é linda e ótima atriz, e a Hathaway está estupenda. Acho que se a Kate Winslet tivesse sido indicada ao Oscar por Foi Apenas um Sonho, torceria pela atriz inglesa, e festejaria sua vitória. No entanto, como foi indicada por O Leitor, Hathaway era a melhor das indicadas, ao menos das que assisti (ainda falta Melissa Leo em Rio Congelado).
Sobre o Demme, você achou a palavra certa para definir seu cinema: reinvenção.

Anônimo disse...

Filme lindo este. Caprichado, simples e densamente envolvente. Que elenco!

4 estrelas, idem.

Ciao!