terça-feira, 22 de junho de 2010

[o escritor fantasma]

O Escritor Fantasma
The Ghost Writer, 2010
Roman Polanski



É difícil assistir ao novo filme de Roman Polanski, O Escritor Fantasma, e não se lembrar daquele que talvez seja, até hoje, seu melhor trabalho: Chinatown. Exatamente como na obra-prima de 1974, há aqui um protagonista "comum", um ser humano médio que acaba envolvido com poderes contra os quais não tem força para lutar - e é justamente sua insistência nesse embate a causa de sua ruína. É bem verdade que essa é uma premissa presente em quase toda a filmografia de Polanski, de Rosemary (em sua luta contra o demônio) a Wladyslaw Szpilman (contra os nazistas), mas O Escritor Fantasma e Chinatown estão mais próximos por tratarem, ambos, de poderes mais mundanos (em oposição ao sobrenatural de O Bebê de Rosemary) e mais subentendidos, escusos (diferentemente do poder instituído de O Pianista).
E, assim como no filme protagonizado por Jack Nicholson, a grande força aqui está na forma como Polanski conduz uma trama que é ao mesmo tempo extremamente complexa e demasiado simples. O que poderia
ser uma história batida de conspiração, daquelas contadas aos montes em Hollywood, se transforma em um filme envolvente e elegante, carregado de tensão e de uma estranha melancolia. Por mais que torçamos pelo protagonista, ele jamais se transforma em um herói, no sentido tradicional do termo: o escritor sem nome de Ewan McGregor (excelente) é um sujeito absurdamente comum, e ganha nossa simpatia justamente por bater de frente com pessoas que estão dispostas a simplesmente esmagá-lo - algo que certamente farão. Exatamente como o Jake Gittes de Chinatown.
Essa aproximação entre os dois trabalhos é coroada com um final devastador, filmado com brilhantismo por Polanski (me refiro ao epílogo como um todo, do bilhete que passa de mão em mão à impactante última imagem). No alto de seus 76 anos, e mais de 35 anos depois de Chinatown, vivendo tudo o que está vivendo, o diretor consegue criar um momento cinematográfico que, arriscaria dizer, é tão memorável quanto ouvir a já icônica "Esquece, Jake. Isso é Chinatown".

sexta-feira, 18 de junho de 2010


[josé saramago]


Este é um blog de cinema. Só por hoje, não o será. Li apenas três livros de José Saramago - todos (ou quase todos) os outros, conheci via minha irmã, estudante de Letras e apaixonada pelo escritor. Três livros foram o bastante para compreender minimamente sua genialidade. Nunca conseguirei explicar em palavras o turbilhão de emoções diante da leitura de Ensaio sobre a Cegueira; nem a vontade incontrolável de chorar ao final de Intermitências da Morte; nem a satisfação sarcástica pela ironia incorrigível de Caim. Nunca. E nem quero. O que quero aqui é prestar minha pequena homenagem a esse grande homem, que hoje, com sua partida, deixou o mundo um lugar pior para se viver. Saramago era daquelas personalidades que achávamos que nunca morreriam. Pois morreu. Foi, até o fim, humano, como todos os seus personagens (mesmo os divinos, sobrenaturais ou demoníacos). E o que há de mais humano que a morte?

quarta-feira, 16 de junho de 2010


[maradona]

Maradona
Maradona by Kusturica, 2008
Emir Kusturica



Nós, brasileiros, temos uma certa dificuldade em admirar verdadeiramente a figura de Maradona. Em muito por culpa da mídia esportiva, sempre reforçando a rivalidade entre Brasil e Argentina através da oposição entre o craque argentino e Pelé. Não vi nenhum dos dois jogar (me recordo vagamente de acompanhar os momentos finais da carreira do argentino, em meados da década de 1990), mas Maradona é, claramente, um personagem cinematográfico muito mais interessante que o "Rei do futebol", e este filme de Emir Kusturica é a prova cabal disso: o diretor iugoslavo (ou seria sérvio?) chega ao extremo de estruturar a narrativa de seu documentário sobre seu grande ídolo relacionando, a todo momento, a vida do jogador com acontecimentos de seus filmes (como Você se Lembra de Dolly Bell?, Quando Papai Saiu em Viagem de Negócios e Gato Preto, Gato Branco). Mas, independente dessa demonstração exageradamente explícita do caráter altamente cinematográfico da vida de Maradona, a verdade é que o sujeito é mesmo uma figura única e fascinante. Mais do que uma personalidade, é um personagem. Um misto de Macunaíma e Jake La Motta (aliás, há uma bela citação a Touro Indomável no filme), um malandro auto-destrutivo apaixonante. Um ser humano tragicômico, muitas vezes um grande idiota. Um Deus. Pelé, por mais genial que tenha sido, jamais daria um filme como esse - um documentário intenso, emocionante e engraçado, e apaixonado por seu retratado, especialmente por seu diretor saber que é graças a ele, Diego Armando Maradona, que seu filme é tão bom.
Com o eterno craque de volta aos holofotes com seu trabalho como técnico da seleção argentina (onde demonstra cada vez mais um comportamento quase iconoclasta, em comparação à sisudez da bem-comportada e religiosa "Família Dunga"), não pude deixar de pensar: se Maradona teve um grande cineasta como Emir Kusturica a biografá-lo, quem seria o responsável por um filme sobre a vida e "obra" do atual técnico da seleção brasileira?

quinta-feira, 10 de junho de 2010

[o segredo dos seus olhos]

O Segredo dos Seus Olhos
El Secreto de Sus Ojos, 2009
Juan José Campanella



É dos pequenos dramas humanos, das mais simples e singelas histórias, que se faz o cinema do argentino Juan José Campanella (seus dois mais famosos filmes, O Filho da Noiva e Clube da Lua, são os melhores exemplos disso). Por isso, não deixa de haver, num momento inicial, um pequeno susto diante de suas opções em O Segredo dos Seus Olhos: uma trama policial, um filme de época carregado de suspense, e com pelo menos uma cena absolutamente grandiosa (a maravilhosa e inacreditável sequência do estádio de futebol, onde o diretor desafia a lógica num plano-sequência que já intriga simplesmente por existir), que, ao que parece, não teria nenhuma relação próxima com o restante de sua filmografia (a não ser, talvez, pela presença sempre encantandora de Ricardo Darín).

Mas é preciso ir além dessas primeiras aparências: O Segredo dos Seus Olhos é um filme de Juan José Campanella do início ao fim, em todos os seus méritos e deméritos. É um filme sobre seus personagens. Sobre seres humanos. Que, assim como seus outros trabalhos, flerta constantemente com o melodrama, mas consegue sempre soar verdadeiro, escapar com dignidade das armadilhas da obviedade e emocionar sem ser choroso (numa reflexão gratuita e sem nenhum embasamento aparente, acho que o cinema de Campanella se aproxima um pouco do que vem fazendo Clint Eastwood, em obras que se utilizam de uma quantidade grande de clichês para criar histórias altamente verossímeis e poderosas dramaticamente). O Segredo dos Seus Olhos é um filme sobre memória, sobre algumas lembranças que simplesmente nos recusamos a abandonar e - por que não? - sobre a obsessão gerada por essas memórias. O que o torna um belo trabalho sobre os efeitos que tal comportamento obsessivo pode gerar no ser humano, colocando-o numa bela sessão casada com filmes como Zodíaco, de David Fincher, e Memórias de um Assassino, de Bong Joon-Ho. Entretanto, assim como nessas duas obras-primas do cinema contemporâneo, o maior mérito de Campanella aqui está em conseguir explorar não apenas a complexidade dramática de seus personagens, mas também a própria trama investigativa de seu filme, que se revela de fundamental importância para que compreendamos as motivações dos homens e mulheres que desfilam na tela. Uma trama que é coroada com um final absurdamente impactante e complexo, que nos envia para fora do cinema atordoados, chocados com a dificuldade em julgar moralmente o que acabamos de presenciar - algo que muitos, em seu raciocínio simplista, certamente tentarão fazer. Não há com o que se preocupar: Campanella continua humano, demasiado humano.



P.S.:
O Segredo dos Seus Olhos é, sem dúvidas, um trabalho digno e merecedor do Oscar de melhor filme estrangeiro que recebeu. O problema é que, na mesma categoria, estava indicada a obra-prima de Michael Haneke A Fita Branca. E, na comparação, o filme de Campanella inevitavelmente sai perdendo. Nesse caso, só a indicação já teria sido um prêmio - a vitória foi um pouco demais.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

[robin hood]

Robin Hood
Robin Hood, 2010
Ridley Scott


Ridley Scott e seus épicos. Da chatice sem fim 1492 - A Conquista do Paraíso aos legais Gladiador e Cruzada, o cineasta inglês sempre demonstrou uma verdadeira obsessão com os chamados "filmes históricos" (poderíamos incluir aqui também seu primeiro longa-metragem, o ótimo Os Duelistas, mas vale lembrar que tal filme possui um clima muito menos megalomaníaco do que seus trabalhos posteriores nesse gênero).
Mas sempre, mesmo no malfadado trabalho sobre Cristóvão Colombo, ele conseguiu manter ao menos um certo grau de qualidade, e demonstrar alguma relevância para suas realizações. Robin Hood é o oposto de tudo isso. É o primeiro "filme histórico" de Scott que, definitivamente, não tem nenhuma razão de ser. Quer dizer, até tinha: a ideia de apresentar a história do ladrão/herói de uma forma mais realista não era de todo ruim; também era boa a proposta inicial do diretor, de contar tal história sob o ponto de vista do tradicional vilão Xerife de Nottingham.
Mas o Robin Hood de Scott não é nem uma coisa nem outra. É um épico confuso, com uma quantidade gigantesca de acontecimentos que só atrapalham a boa fluência da narrativa (especialmente em sua metade final, quando tanta coisa acontece em tão pouco tempo que entender o filme se torna uma missão quase impossível). E é uma obra recheada com todos os lugares-comuns do gênero (o herói honrado e seus companheiros engraçados, o vilão ganacioso, o rei fraco, o casal que briga, briga, mas se apaixona, e assim por diante). Cadê o realismo, sr. Scott?! Ou será que, para o diretor, ser realista é simplesmente filmar batalhas com câmera tremida, ou tentar copiar O Resgate do Soldado Ryan em uma grande sequência de ação? O Xerife de Nottingham, por sua vez, outrora interpretado com tanto talento por Alan Rickman, foi aqui relegado ao papel mínimo, sem nenhum relevância - ao que parece, seu embate com Robin ficou para uma continuação que, se há alguma justiça nesse mundo, jamais será feita.
Ridley Scott faria muito bem retornando seu olhar para o século XX (como bem mostrou o recente O Gângster, seu melhor filme em muito tempo) ou, quem sabe, para o futuro. Seria bom, enquanto ainda lembramos que esse é o mesmo sujeito responsável por obras-primas como Alien e Blade Runner. Robin Hood? Saudades do Kevin Costner, e do Bryan Adams cantando "everything I do, I do it for you..."