quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Festival do Rio 2013: dia 5



O Ato de Matar é o filme mais difícil de ser avaliado entre os que assisti nessa edição do Festival do Rio. O exaustivo documentário do diretor norte-americano Joshua Oppenheimer parte da proposta inusitada de reconstituir o massacre de opositores políticos ocorrido na Indonésia, em meados da década de 1960, a partir da visão dos próprios algozes, membros do crime organizado que foram mobilizados na época pelo brutal regime militar que se instalara no poder para a execução de tal tarefa. Para além das questões éticas, geradoras de todo um complexo debate em torno da opção de Oppenheimer por dar voz a monstros que passam duas horas e meia zombando de suas vítimas e se vangloriando de seu passado "heróico", O Ato de Matar peca por ter uma estrutura narrativa repetitiva, calcada sobre sucessivas encenações pelos assassinos dos assassinatos cometidos, e também por vez ou outra focar em ações desimportantes de determinados personagens (como ao subitamente passar a acompanhar o engajamento de um dos criminosos na vida política). Ainda assim, o resultado final alcançado é impressionante, especialmente por fazer desmoronar diante da câmera a imagem aparentemente desprovida de remorso do protagonista Anwar Congo, numa catarse invertida que faz valer todo o filme - e todo o projeto, na verdade, ao conseguir imprimir em figura tão horrenda algum senso de compreensão da alteridade e de reconhecimento dos crimes que cometeu. O epílogo de O Ato de Matar é daqueles momentos capazes de restituir no espectador a crença na força transformadora da arte. 

O Rei da Fuga, longa de 2009 do diretor francês Alain Guiraudie - presente no Festival para o lançamento de seu mais recente trabalho, o elogiadíssimo Um Estranho no Lago (que não vi, infelizmente) -, é uma agradabilíssima comédia dramática gay. Guiraudie parece ser dono de uma sensibilidade única para abordar tal universo, tratando com imenso carinho seus nada idealizados personagens, homens de meia-idade ou já na terceira idade em geral feios e de corpos não-atléticos, mas ainda assim dispostos a novas descobertas sexuais e sentimentais. O exemplo maior é, claro, o protagonista Armand (o ótimo Ludovic Berthillot), vendedor que, com pouco mais de quarenta anos, passa a questionar sua homossexualidade ao iniciar inusitado relacionamento com uma adolescente problemática (Hafsia Herzi). Despudorado e debochado ao extremo, mas nunca perdendo a delicadeza, O Rei da Fuga lembra o cinema que Almodóvar fazia na década de 1980, ainda que sem seu visual espalhafatoso característico.


O Ato de Matar 
The Act of Killing, 2012
Joshua Oppenheimer

O Rei da Fuga 
Le Roi de L'Evasion, 2009
Alain Guiraudie

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Festival do Rio 2013: dias 3 e 4



Meu primeiro contato com o cinema do francês Jean-Claude Brisseau não foi lá dos mais positivos. Em A Garota de Lugar Nenhum, seu mais recente trabalho, o diretor tem o mérito de, ao filmar em seu próprio apartamento, construir uma narrativa carregada de intimidade e carinho, que conta a inusitada relação entre um velho professor (interpretado pelo próprio Brisseau) e uma jovem e misteriosa mulher. Mas se vez ou outra Brisseau cria grandes momentos (a conversa com o amigo sobre a chegada da velhice e a perda do interesse sexual e principalmente uma aterradora sequência saída diretamente do cinema de horror), ele acaba derrapando na construção meio tosca de algumas cenas e na inserção atabalhoada de elementos sobrenaturais na trama, que acabam desembocando numa constrangedora sessão espírita que em nada deve ao recente cinema religioso produzido no Brasil. É estranho ver um cineasta experiente como Brisseau filmar tão mal uma história que parece tão sua, tão sob o seu domínio.

The Immigrant - inexplicavelmente chamado de O Imigrante no Festival do Rio, quando sua história é na verdade protagonizada por uma mulher - é mais um filme classudo de James Gray. Tributário do melhor cinema americano dos anos 70 (especialmente de Coppola e Cimino), Gray novamente constrói uma obra complexa e amarga, na qual personagens cheios de nuances são forçados a escolhas extremas. Como bem apontou o crítico Filipe Furtado em texto na revista Cinética, The Immigrant é uma espécie de releitura feminina de Amantes (2009), obra-prima anterior do diretor. Mas aqui a condição de gênero e o ambiente histórico hostil exercem papel importante, restringindo as opções de Ewa (Marion Cotillard, em seu melhor desempenho desde Piaf) e forçando-a a uma dúbia submissão ao judeu Bruno (Joaquin Phoenix), homem trágico por sua incapacidade de demonstrar o amor que sente. Se Cotillard traz a tragédia nos olhos desde o primeiro momento que surge em cena, cabe a Phoenix mais uma vez interpretar o personagem mais triste de um filme de Gray. Afinal, a dignidade que ainda resiste em Ewa já se perdeu há muito tempo em Bruno - ao menos não a ponto de lhe garantir qualquer possibilidade de redenção. O belíssimo plano final de The Immigrant, que deveria garantir a Gray todos os prêmios de direção possíveis no mundo, deixa isso bem claro.

O que James Gray tem de talentoso, Lee Daniels tem de medíocre. Após assistir ao desastroso O Mordomo da Casa Branca, seu trabalho mais recente, nessa mesma edição do Festival, encarei Obsessão, filme imediatamente anterior do diretor que até gerou algum burburinho Cannes no ano passado, mas depois foi devidamente esquecido. Digo isso porque o filme é uma porcaria. Reúne em quase duas horas de uma confusa narrativa todo o mau gosto de Daniels, com sua espetacularização da miséria, pseudo consciência social, personagens caricatos e exagerados (por que, Nicole Kidman, por que?!) e uma câmera inquieta e supostamente moderna que parece ter como único propósito irritar o espectador. O horror, o horror. Salva-se apenas Matthew McCounaghey, que no momento iluminado pelo qual passa sua carreira consegue tornar interessante um personagem que, mal desenvolvido pelo roteiro, merecia o protagonismo de fato dessa história. Em tempo: Daniels esteve na sessão em que assisti ao filme, para responder a eventuais questionamentos no final. No entanto, a maior parte dos presentes deixou a sala apressada assim que os créditos começaram a subir na tela, o que provavelmente explica as respostas preguiçosas e mal educadas que o diretor deu às poucas (e estúpidas) perguntas que apareceram. Falta de educação por falta de educação, a maior delas foi de Daniels, ao realizar esse pavoroso Obsessão.


A Garota de Lugar Nenhum 
La Fille de Nulle Part, 2012
Jean-Claude Brisseau

The Immigrant 
The Immigrant, 2013
James Gray

Obsessão 
The Paperboy, 2012
Lee Daniels

sexta-feira, 4 de outubro de 2013

Festival do Rio 2013: dia 2



No segundo dia de Festival do Rio, dediquei-me a dois filmes vindos do Leste Europeu e comandados por diretores consagrados internacionalmente: Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho, do bósnio Danis Tanovic (vencedor do Oscar de filme estrangeiro com o excelente Terra de Ninguém), e Walesa, do veterano cineasta polonês Andrzej Wajda (de clássicos como Cinzas e Diamantes, O Homem de Mármore, O Homem de Ferro e Danton).

O primeiro é uma experiência árdua, na qual Tanovic narra a luta de uma família de ciganos por atendimento adequado no sistema de saúde público da Bósnia. O diretor aposta numa estética seca, brutal e naturalista para abordar temas relevantes socialmente, se aproximando bastante de exemplares do cinema romeno recente. É claro que a proposta ultra-naturalista de Tanovic não deixa de passar por certas estratégias dramáticas que têm o objetivo de manter o espectador tenso e envolvido com a história narrada (como na sequência em que a protagonista utiliza um cartão de seguro-saúde de outra pessoa para conseguir o atendimento desejado, correndo o risco de sofrer consequências que provavelmente agravariam ainda mais a já calamitosa situação daquela família), mas o filme consegue se equilibrar bem entre o denuncismo e a simplicidade cotidiana do universo que apresenta. Apesar de toda a dureza e miséria que se vê na tela, é dos pequenos momentos de carinho familiar e solidariedade entre vizinhos que emana a maior força Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho. Belo filme.

Walesa, por sua vez, é uma cinebiografia bem tradicional de Lech Walesa (vivido pelo ótimo Robert Wieckiewicz), líder operário da oposição ao regime comunista polonês que, no início da década de 1990, chegou à presidência do país. Por motivos óbvios, é difícil não comparar o filme de Wajda com Lula, o Filho do Brasil, e, nesse sentido, apesar de seu formato igualmente quadrado, Walesa é um trabalho bem melhor acabado. Isso se dá provavelmente devido ao recorte preciso proposto pelo diretor: enquanto o longa de Fábio Barreto acompanhava Luis Inácio Lula da Silva do nascimento até as greves do ABC  nos anos 80, focando também na trajetória de sua mãe, interessa a Wajda o momento em que Lech Walesa ascende ao protagonismo político num cenário de contestação crescente do comunismo. Por isso, apesar de retornar brevemente a 1970 e, no final, se estender até os anos 90, a narrativa de Walesa permanece durante quase todo o tempo concentrada entre os anos de 1980 e 1983, quando o protagonista fundou o movimento Solidariedade e liderou as grandes greves que pararam a Polônia, abalaram o regime vigente e transformaram-no em celebridade mundial, levando-o inclusive a ser laureado com o Prêmio Nobel da Paz. Reconhecido esse mérito, é preciso dizer que o filme se alonga um pouco demais e que seu formato pouco ousado não ajuda muito no esforço de torná-lo menos esquecível que tantas outras cinebiografias de líderes políticos produzidas mundo afora.


Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro-Velho 
Epizoda u zivotu beraca zeljeza, 2013
Danis Tanovic

Walesa 
Walesa. Czlowiek z nadziei, 2013
Andrzej Wajda