domingo, 2 de fevereiro de 2014

Quando Eu Era Vivo



O senso comum costuma apresentar o cinema como parasitário da literatura, no intuito de condenar os filmes "infiéis" à sua fonte literária. É uma pena que ainda existam tantos metidos a entendedores (já que sobre cinema qualquer um pode falar) destilando por aí suas visões preconceituosas sobre um arte que supostamente amam - e não duvido que logo apareçam leitores de Lourenço Mutarelli para achincalhar Quando Eu Era Vivo, adaptação cinematográfica do sensacional livro A Arte de Produzir Efeito sem Causa (ainda que o próprio autor faça uma participação no filme, como que dando seu aval para as mudanças realizadas pelo roteiro de Marco Dutra e Gabriela Amaral Almeida na história do homem de meia-idade que, recém-separado da esposa, retorna à casa do pai e mergulha na mais completa loucura).

Pois não duvidem: Quando Eu Era Vivo é um filme bastante infiel aos escritos de Mutarelli. Dutra e sua co-roteirista abrem mão da discussão central de A Arte de Produzir Efeito sem Causa (o poder das palavras, ou de certas combinações de palavras, sobre mente e corpo humanos, e a possibilidade de possessão demoníaca advinda daí), bem como de algumas subtramas (o humilhante adultério da esposa do protagonista, por exemplo), para focar nos demônios internos ao ambiente familiar, representados pela memória da figura da mãe, devotada às artes do oculto. Sai o elemento externo, as misteriosas correspondências com referências à William Burroughs, e entra um passado não totalmente exorcizado que retorna para assombrar os personagens de Marat Descartes e Antônio Fagundes. É onde o filme se aproxima de Trabalhar Cansa, o igualmente macabro trabalho anterior de Dutra na direção, no qual os demônios de uma família também se materializam em acontecimentos sobrenaturais. A diferença é que, enquanto este último se preocupa também em debater questões sociais (a humilhação do desemprego, a apatia do cotidiano da classe média, as relações de poder entre patrões e empregados), Quando Eu Era Vivo se filia mais explicitamente ao cinema de gênero, apostando num clima claustrofóbico que parece remeter diretamente à "trilogia do apartamento" de Roman Polanski.

É justamente através da infidelidade à sua fonte literária que Dutra constrói um grande filme. São acertos como a substituição do elemento desencadeador da loucura do protagonista (ao invés da palavra escrita, são velhas imagens caseiras gravadas em VHS que exercem essa função) que mostram o quanto o diretor compreende as especificidades da arte que produz. No fim das contas, Quando Eu Era Vivo consegue, por caminhos distintos, ser quase tão perturbador quanto A Arte de Produzir Efeito sem Causa. Reclamar do quê?


Quando Eu Era Vivo 
Marco Dutra
2014

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