quarta-feira, 24 de setembro de 2014

A Morte num Beijo


Se o cinema noir é conhecido pelo pessimismo, expresso em personagens dúbios que trafegam por universos degradados com poucas possibilidades de redenção, A Morte num Beijo (1955), de Robert Aldrich, eleva essa característica do gênero a um novo patamar. Produzido em meio à Guerra Fria, o filme faz uso da paranoia típica do período para transformar a desesperança do noir em ameaça apocalíptica, a falta de perspectiva de seus personagens em certeza de danação.

O desarranjo do mundo, o caos incapaz de ser consertado é anunciado já nos créditos iniciais de A Morte num Beijo, que surgem na tela em ordem invertida, ao som de uma melancólica canção de Nat King Cole. Aliás, toda a magistral sequência de abertura do filme faz um mergulho profundo no desespero que marcará o restante da narrativa: a fuga alucinada da misteriosa Christina (cuja presença em cena evoca a possibilidade da loucura como elemento importante na trama, já que a mulher acabou de escapar de um sanatório); sua busca por socorro que, no fim das contas, a própria considera inútil, já que seus perseguidores são por demais poderosos (a certeza da captura expressa em uma fala sua ao protagonista Mike Hammer reforça essa inevitabilidade do mal que atravessa A Morte num Beijo); a tortura e a morte brutais, únicos caminhos possíveis nesse mundo.   

Daí em diante, é ladeira abaixo. A estratégia do noir de lançar seus personagens em mundos sobre os quais não conseguem exercer nenhum controle é radicalizada por Aldrich: se no também magnífico Anjo do Mal (1953), de Samuel Fuller, o batedor de carteiras conseguia derrotar um inimigo muito mais poderoso fazendo uso do que aprendeu nas ruas, em A Morte num Beijo a esperteza de Hammer até produz resultados na investigação que conduz, mas é muito pouco para garantir qualquer tipo de segurança ao personagem e à sua amada. Resta correr, fugir como Christina fugiu, enquanto o mundo vem abaixo – e sob o risco de serem alcançados por essa destruição.

É difícil resistir impassível à força avassaladora de A Morte num Beijo. Não à toa, o filme parece ter sido uma importante inspiração para David Lynch realizar uma de suas obras-primas, o ainda mais desesperado e alucinante Estrada Perdida (1997).* E não é para qualquer um habitar os pesadelos perturbadores de Lynch.


* Agradeço ao Aílton Monteiro por me atentar para as semelhanças entre os filmes de Robert Aldrich e David Lynch.

A Morte num Beijo 

Kiss me Deadly, 1955
Robert Aldrich