terça-feira, 20 de outubro de 2015

O Clã



Em sociedades que viveram sob ditaduras brutais, como as de alguns países latino-americanos entre as décadas de 60 e 80 e europeus nos anos 20 e 30, por vezes surgem questionamentos sobre o quanto as pessoas realmente sabiam das violências e arbitrariedades cometidas naqueles anos e sobre os muitos comportamentos decorrentes desse conhecimento (ou da falta dele): a alienação, a indiferença, a ambiguidade, a colaboração, a resistência etc. O Clã, novo filme do sempre interessante Pablo Trapero, faz esse tipo de indagação ao contar a inusitada e apavorante história dos Puccio, família de classe média na Argentina do início dos anos 80 que sequestrava e matava poderosos empresários, enquanto embolsava vultosas quantias de dinheiro com os resgates cobrados. No contexto em que se passa a história do filme, de esfacelamento da ditadura militar daquele país, os horrores da casa dos Puccio e o incerto desconhecimento de alguns membros da família sobre o que acontecia no local servem de metáfora para o comportamento indefinido da maior parte da sociedade argentina durante os anos de autoritarismo. Trapero acerta em não explicitar essa discussão na narrativa de O Clã, em deixá-la subentendida, evitando uma postura mais militante que descambaria para acusações contra os que nada fizeram para impedir o horror: como nos contextos ditatoriais citados, são muitos os fatores que compõem o comportamento, tão humano, do não envolvimento com o que não lhe diz respeito diretamente, que vão do bem-estar econômico que pode gerar conforto e acomodação ao medo de retaliações. 

A seriedade e o potencial de polêmica que discussões desse tipo carregam parecem mais que adequados ao cinema árduo e pesado de Trapero, diretor acostumado a filmar histórias de figuras marginais em mundos cruéis e violentos (seus últimos três trabalhos exemplificam bem essa predileção: Leonera, Abutres e Elefante Branco, todos filmes duros sobre pessoas endurecidas pela vida). No entanto, apesar de ser de fato sério, violento e político, O Clã representa um bem-vindo respiro na carreira recente de Trapero, que sai do registro puramente realista e adentra num cinema mais claramente de gênero, com ritmo ágil, deliciosa trilha sonora de rocks setentistas e até mesmo uma referência direta a Os Bons Companheiros, obra-prima de Martin Scorsese que se tornou ícone do tipo de “filme de crime” com o qual O Clã busca dialogar (sem contar que o patriarca da família Puccio, interpretado por Guillermo Francella, por vezes parece saído daquelas famílias de psicopatas de slashers americanos como O Massacre da Serra Elétrica e Quadrilha de Sádicos). Mesmo no uso de seus conhecidos planos-sequência, Trapero parece mais solto, se divertindo sem a pretensão de fazer de sua câmera em movimento um guia para o espectador por mundos miseráveis.

Talvez caiba especular se essa mudança não resulta da presença, na produção do filme, da El Deseo, empresa dos irmãos Almodóvar que já produzira, no ano passado, Relatos Selvagens, outro grande sucesso do cinema argentino. A deliciosa coletânea de contos de Damián Szifrón, aliás, está muito mais próxima de O Clã que os trabalhos imediatamente anteriores de Trapero: é difícil não lembrar das melhores histórias de Szifrón diante do violento epílogo da saga dos Puccio, por exemplo, que o diretor filma com uma ironia selvagem.  

O Clã 
El Clan, 2015
Pablo Trapero

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

A Travessia



O oscarizado documentário O Equilibrista (2008), de James Marsh (mesmo sujeito que realizaria, alguns anos depois, o insuportável A Teoria de Tudo), já contara as façanhas do francês Philippe Petit, que Robert Zemeckis revisita agora em A Travessia. No entanto, se aquele ótimo filme parecia limitado por certas convenções de uma maneira meio televisiva de se tratar o gênero documentário (depoimentos, imagens de arquivo e reconstituições ilustrativas), A Travessia alça voo na liberdade que a narrativa ficcional lhe dá e na inventividade visual de seu diretor. Há no filme um toque de magia essencial a uma história protagonizada por Petit.

O tom farsesco, circense, do equilibrista francês, quase um ilusionista, casa perfeitamente com o cinema de Zemeckis (e com a atuação exagerada de Joseph Gordon-Levitt), também um mágico a seu próprio modo, diretor quase sempre preocupado em proporcionar ao espectador experiências visuais (construídas a partir de trucagens permitidas pela linguagem cinematográfica) acachapantes. Foi assim em De Volta para o Futuro, Uma Cilada para Roger Rabbit, A Morte lhe Cai Bem, Forrest Gump e mesmo em suas não tão bem-sucedidas experiências com a animação. Em A Travessia, Zemeckis faz uso de quantidades imensas de efeitos visuais e de um esplêndido 3D para nos colocar onde O Equilibrista não conseguia: ao lado de Petit realizando sua mágica de atravessar, por sobre um cabo, o espaço que separava as duas torres do World Trade Center. Por mais que as fotografias, imagens de arquivo e palavras do próprio Petit, no filme de Marsh, evocassem seu feito, estar no cabo com ele, vendo o que ele provavelmente viu lá de cima, é algo que só um cinema espetacular – e de ficção – como o de Zemeckis consegue proporcionar. Não à toa, é em seu longo epílogo que o filme, até ali apenas uma experiência ágil, agradável e divertida, se aproxima do sublime. 

A Travessia também é, mais até que O Equilibrista, uma bela homenagem ao símbolo de Nova York derrubado por terroristas em setembro de 2001. Aqui, outra vez, o filme de Zemeckis se sai melhor que o de Marsh: enquanto o documentário tinha a sua disposição apenas imagens de arquivo do World Trade Center, a ficção recria os prédios de maneira a torná-los uma imagem do presente, permanente, viva na tela. Quando essa vida começa a se desvanecer, no último plano do filme (após Petit sair de cena com um olhar de profunda dor), A Travessia deixa no espectador um nó na garganta difícil de ser desfeito.


A Travessia 
The Walk, 2015
Robert Zemeckis

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

O Outro Lado


Frequentemente classificado como documentário, O Outro Lado é um caso excelente de filme que borra as fronteiras entre realidade e ficção do que é mostrado na tela de cinema. O diretor Roberto Minervini se propõe a acompanhar o cotidiano de uma comunidade pobre na Louisiana, Estados Unidos, mas seu método parece trafegar entre a observação e a encenação. Onde termina uma e começa a outra, não sabemos. A impressão é de que, na maior parte do tempo, como no bósnio Um Episódio na Vida de um Catador de Ferro Velho (2013), de Danis Tanovic, os personagens estão encenando para a câmera cenas de seu próprio cotidiano, algumas delas bastante íntimas. O que não torna tais momentos menos “reais” – será que o ato de encenar enfraqueceria a veracidade do registro? Penso que os avanços já ocorridos nas discussões sobre o que define o documentário (como não lembrar do cinema de Eduardo Coutinho?) deixam claro que não.

Pode-se questionar, a partir daí, se O Outro Lado extrapola certos limites da ética em seu procedimento. Seria correto pedir a figuras degradadas que encenem (logo, vivam) sua própria degradação para a câmera? A resposta para isso não é fácil, mas, de qualquer maneira, está aí a fonte de grande parte do incômodo gerado pelo filme de Minervini. Ou seja, o diretor italiano alcança os efeitos pretendidos, mas por métodos talvez questionáveis.

Não me parece questionável, no entanto, o que Minervini faz na última parte do filme, ao registrar (aqui ele parece de fato estar apenas acompanhando um grupo de homens em seus afazeres e não pedindo que eles encenem para a câmera; mas, novamente, há muita diferença?) a presença de um grupo paramilitar naquela mesma região da Louisiana. O comportamento paranoico e odioso dos sujeitos, que vomitam preconceito e agressividade sobretudo contra Barack Obama, é tão non-sense que poderia gerar algumas risadas do lado de cá, tão acostumados que estamos em pintar os americanos de cima como meio loucos. O problema é que convivemos com fenômeno semelhante no Brasil de hoje. Diante da imagem de uma mulher com uma máscara de Obama simulando sexo oral num homem, ou desses paramilitares explodindo um carro que representaria o presidente norte-americano, é difícil não lembrar de casos recentes parecidos com esses ocorridos no Brasil (como o do adesivo com Dilma Rousseff de pernas abertas, colado no local em que é depositada a gasolina nos carros, os bonecos de Dilma e Lula enforcados, o lançamento de panfletos com os dizeres “Petista bom é petista morto” no velório de um ex-presidente do Partido dos Trabalhadores e outras coisas mais).

Minervini, num exercício bastante corajoso de reconhecimento do outro, foi da Itália ao interior dos Estados Unidos para investigar o lado feio e degradado (O Outro Lado remete a Indomável Sonhadora, de Ben Zeitlin, tanto na forte carga distópica que ambos carregam, por vezes não parecendo estarem falando de uma realidade presente, mas sim de um futuro desolador, quanto na capacidade de encontrar manifestações intensas de carinho em ambientes profundamente hostis) da maior potência mundial. Mas acabou realizando um filme que faz muito sentido para um público que, provavelmente, ele não mirava: o brasileiro de 2015.

O Outro Lado 

The Other Side, 2015
Roberto Minervini

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Pele de Vênus


É conhecido o gosto de Roman Polanski por narrativas que se passam em espaços fechados e/ou com poucos personagens. De seu primeiro filme, A Faca na Água (1962), com três atores num barco durante quase todo o tempo, passando pela magnífica “trilogia do apartamento” – Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976) –, até trabalhos mais recentes, Polanski frequentemente retorna a esse esquema que domina tão bem.

Em A Pele de Vênus, o diretor franco-polonês está próximo de seu filme imediatamente anterior, Deus da Carnificina (2011), na utilização buñueliana de um ambiente fechado, que não permite que seus personagens saiam para as ruas (só a câmera de Polanski o faz, no início e no final de cada um dos filmes), e na inspiração em peças teatrais contemporâneas (sendo que, em A Pele de Vênus, o teatro é também tema, com toda sua trama se desenrolando sobre um palco). No entanto, aqui também está presente outro elemento caro a Polanski: a condição feminina nas relações de poder estabelecidas com os homens. O comportamento assumido pela personagem de Emanuelle Seigner ao longo de A Pele de Vênus, invertendo a dominação exercida inicialmente pelo diretor Thomas (Mathieu Amalric) e subjugando-o completamente à sua vontade, funciona como uma emblemática vingança contra os homens em geral, historicamente empoderados em seu trato com o sexo feminino. No diálogo com a obra de Polanski, é como se Vanda (Seigner) vingasse Rosemary, manipulada em seu impulso maternal pelo marido, que vendeu seu corpo ao demônio; vingasse a Carol de Repulsa ao Sexo, com seu medo constante (tão feminino) de ser violada; e a Krystyna de A Faca na Água, frequentemente menosprezada por seu parceiro. Daí a importância do diálogo de Polanski com a tragédia grega As Bacantes, de Eurípedes, citada rapidamente no meio de A Pele de Vênus e retomada de forma impactante no epílogo.
  
É verdade que tanto Carol quanto Krystyna já haviam reagido de alguma forma contra seus opressores (por meio do assassinato no primeiro caso e da traição no segundo), mas a força simbólica dos atos de Vanda é ainda maior. Ao manipular, subjugar, humilhar e, ao final, sacrificar (ainda que não literalmente) seu inimigo masculino, a personagem se aproxima da protagonista de A Morte e a Donzela (1994), que, aliás, é provavelmente o filme de Polanski mais parecido com A Pele de Vênus, ainda que nele os atos da protagonista sejam motivados mais por questões pessoais do que pelo “justiçamento de gênero” promovido por Vanda.

É verdade também que Roman Polanski tem em sua biografia um célebre caso de estupro de uma menor, que talvez permita a leitura de A Pele de Vênus como um filme misógino: Vanda e as mulheres seriam vilãs cruéis a humilhar e destruir homens até decentes como o Thomas vivido por Amalric – interpretação que poderia se estender para a loucura assassina de Carol em Repulsa ao Sexo, para a vingança irracional da protagonista de A Morte e a Donzela, para o adultério e a manipulação da Krystyna de A Faca na Água. Mas não penso ser esse o caso, uma vez que nesses filmes de Polanski as ações de suas personagens femininas, da mais prosaica traição a brutais assassinatos, não vêm do nada, mas como reações a ameaças externas, sempre masculinas. Assim, o sujeito responsável pelo ato mais abjeto que se pode cometer contra uma mulher vem produzindo, desde os anos 60, uma obra de visceral empatia com o feminino – mesmo em seu noir, Chinatown, Polanski fugiu da ideia da femme fatale manipuladora e inescrupulosa, contando com uma protagonista feminina vítima de terrível abuso masculino. São as complexidades do humano.                

A Pele de Vênus 
La Vénus a la Fourrure, 2013
Roman Polanski