quinta-feira, 1 de outubro de 2015

A Pele de Vênus


É conhecido o gosto de Roman Polanski por narrativas que se passam em espaços fechados e/ou com poucos personagens. De seu primeiro filme, A Faca na Água (1962), com três atores num barco durante quase todo o tempo, passando pela magnífica “trilogia do apartamento” – Repulsa ao Sexo (1965), O Bebê de Rosemary (1968) e O Inquilino (1976) –, até trabalhos mais recentes, Polanski frequentemente retorna a esse esquema que domina tão bem.

Em A Pele de Vênus, o diretor franco-polonês está próximo de seu filme imediatamente anterior, Deus da Carnificina (2011), na utilização buñueliana de um ambiente fechado, que não permite que seus personagens saiam para as ruas (só a câmera de Polanski o faz, no início e no final de cada um dos filmes), e na inspiração em peças teatrais contemporâneas (sendo que, em A Pele de Vênus, o teatro é também tema, com toda sua trama se desenrolando sobre um palco). No entanto, aqui também está presente outro elemento caro a Polanski: a condição feminina nas relações de poder estabelecidas com os homens. O comportamento assumido pela personagem de Emanuelle Seigner ao longo de A Pele de Vênus, invertendo a dominação exercida inicialmente pelo diretor Thomas (Mathieu Amalric) e subjugando-o completamente à sua vontade, funciona como uma emblemática vingança contra os homens em geral, historicamente empoderados em seu trato com o sexo feminino. No diálogo com a obra de Polanski, é como se Vanda (Seigner) vingasse Rosemary, manipulada em seu impulso maternal pelo marido, que vendeu seu corpo ao demônio; vingasse a Carol de Repulsa ao Sexo, com seu medo constante (tão feminino) de ser violada; e a Krystyna de A Faca na Água, frequentemente menosprezada por seu parceiro. Daí a importância do diálogo de Polanski com a tragédia grega As Bacantes, de Eurípedes, citada rapidamente no meio de A Pele de Vênus e retomada de forma impactante no epílogo.
  
É verdade que tanto Carol quanto Krystyna já haviam reagido de alguma forma contra seus opressores (por meio do assassinato no primeiro caso e da traição no segundo), mas a força simbólica dos atos de Vanda é ainda maior. Ao manipular, subjugar, humilhar e, ao final, sacrificar (ainda que não literalmente) seu inimigo masculino, a personagem se aproxima da protagonista de A Morte e a Donzela (1994), que, aliás, é provavelmente o filme de Polanski mais parecido com A Pele de Vênus, ainda que nele os atos da protagonista sejam motivados mais por questões pessoais do que pelo “justiçamento de gênero” promovido por Vanda.

É verdade também que Roman Polanski tem em sua biografia um célebre caso de estupro de uma menor, que talvez permita a leitura de A Pele de Vênus como um filme misógino: Vanda e as mulheres seriam vilãs cruéis a humilhar e destruir homens até decentes como o Thomas vivido por Amalric – interpretação que poderia se estender para a loucura assassina de Carol em Repulsa ao Sexo, para a vingança irracional da protagonista de A Morte e a Donzela, para o adultério e a manipulação da Krystyna de A Faca na Água. Mas não penso ser esse o caso, uma vez que nesses filmes de Polanski as ações de suas personagens femininas, da mais prosaica traição a brutais assassinatos, não vêm do nada, mas como reações a ameaças externas, sempre masculinas. Assim, o sujeito responsável pelo ato mais abjeto que se pode cometer contra uma mulher vem produzindo, desde os anos 60, uma obra de visceral empatia com o feminino – mesmo em seu noir, Chinatown, Polanski fugiu da ideia da femme fatale manipuladora e inescrupulosa, contando com uma protagonista feminina vítima de terrível abuso masculino. São as complexidades do humano.                

A Pele de Vênus 
La Vénus a la Fourrure, 2013
Roman Polanski

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