domingo, 29 de novembro de 2015

Chatô - O Rei do Brasil

 

Numa das primeiras cenas de Chatô – O Rei do Brasil, Assis Chateaubriand aparece travestido de índio, devorando um pedaço de carne humana enquanto olha, desafiador, diretamente para o espectador. Essa será a postura assumida pelo personagem no restante da narrativa desse infame filme de Guilherme Fontes, que finalmente chega aos cinemas após quase 20 anos do início de sua produção. Apesar das compreensíveis comparações com Cidadão Kane – Chateaubriand é, como Kane, um magnata da mídia propenso ao sensacionalismo e com relações intrínsecas, muitas vezes espúrias, com a política –, o Chatô canibal de Fontes está mais para Venceslau Pietro Pietra, vilão do Macunaíma de Joaquim Pedro de Andrade. Ambos são antropófagos no pior sentido do termo, adeptos de uma devoração que destrói quem atravessa seus caminhos, “gigantes” movidos a sexo, dinheiro e poder. 

Já o tom de deboche de Chatô - O Rei do Brasil remete não só a essa obra-prima do Cinema Novo, mas também a Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, marco da “retomada” do cinema nacional nos anos 90, época em que Fontes filmou. Aliás, a pretensão de, por meio da sátira a "grandes personagens", explicar o país, aproxima Chatô ainda mais dessas duas matrizes – o Cinema Novo pós-tropicalista de Joaquim Pedro e a comédia histórica/histérica de Carla Camurati –, o que, em tempos de filmes brasileiros minimalistas, íntimos e muito preocupados com o micro (no qual por vezes se projeta o macro, é verdade, como nos recentes O Som ao Redor e Que Horas Ela Volta?, mas ainda assim mantendo o foco nas pequenas histórias), poderia soar anacrônico, envelhecido. Isso não acontece. 

A estrutura complexa da narrativa, com pelo menos três instâncias de narração (o presente de Chateaubriand, no hospital, a alucinação com seu julgamento num programa de TV à lá Chacrinha e as lembranças do passado, que também se dão... dentro do julgamento?), é arriscada, mas muito bem construída, surpreendentemente coesa. Ela mantém o filme de pé. E a completa despreocupação com a precisão histórica, misturando tempos e personagens num contar agônico e alucinante (o que é absolutamente condizente com as condições de saúde de seu protagonista-narrador), funciona como uma espécie de exortação a um cinema biográfico e/ou político menos careta e oficialesco, mais livre e safado. Vindo diretamente do passado em que foi concebido e filmado, Chatô se coloca, portanto, como um filme para o futuro. Oxalá seja visto, discutido, compreendido e tomado como um exemplo (estético, narrativo) possível a ser seguido. 


Chatô - O Rei do Brasil 
Guilherme Fontes 
2015

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

Aliança do Crime



A maquiagem usada por Johnny Depp para se caracterizar como James “Whitey” Bulger em Aliança do Crime remete a muitos dos trabalhos de sua carreira pós-Piratas do Caribe, marcada, quase toda, por uma presença over do ator em cena, frequentemente repetindo os trejeitos criados para viver Jack Sparrow. Mas remete também à sua predileção, anterior a 2003, por personagens considerados estranhos. Em quase toda a parceria com Tim Burton, por exemplo, Depp interpretou figuras desse tipo: o Edward de Edward Mãos-de-Tesoura, o Willy Wonka de A Fantástica Fábrica de Chocolate, o Sweeney Todd do filme homônimo, o Chapeleiro Louco de Alice no País das Maravilhas, o Barnabas Collins de Sombras da Noite. No caso do Bulger encarnado pelo ator, a pele excessivamente pálida, os dentes amarelados e a artificialidade das lentes de contato azuis utilizadas fazem dele algo próximo de uma figura monstruosa, que, fisicamente, caberia bem numa fantasia mequetrefe de Burton.

Apenas fisicamente, no entanto. Isso porque, felizmente, a direção de Aliança do Crime é de Scott Cooper, que, apesar de não ser propriamente um grande realizador, adora um clima sóbrio, distante de exageros. A apatia emocional do cinema de Cooper, que prejudicou Coração Louco e Tudo por Justiça, faz bem a seu novo filme, tanto por controlar Depp em cena, contrapondo à presença visualmente chamativa de Bulger uma atmosfera de frieza e distanciamento (refletida na composição discreta do ator, que faz um personagem também frio, raramente dado a rompantes emocionais à lá Tony Montana), quanto por evitar transformar Aliança do Crime em mais um exemplar de um cinema de gângster violento mas bem-humorado, no estilo de Os Bons Companheiros. Nem todo filme do gênero pode (e nem precisa) tentar ser a obra-prima de Martin Scorsese, e, por mais que numa cena específica Cooper faça referência a um clássico momento de Os Bons Companheiros, o tom absolutamente sério, por vezes até sisudo, adotado pelo diretor mantém Aliança do Crime longe desse importante (mas excessivamente copiado) marco do cinema dos últimos 25 anos.

Por falar em Scorsese, um ponto interessante de Aliança do Crime é que ele desenvolve uma informação presente em Os Infiltrados, mas perdida em meio ao ritmo frenético da narrativa do oscarizado filme de 2006: a referência à atuação do mafioso Frank Costello (interpretado por Jack Nicholson e inspirado na figura real de Bulger) como informante do FBI. Essa é, na verdade, a questão central do roteiro de Mark Mallouk e Jez Butterworth, preocupado, sobretudo, em discutir os efeitos nefastos da proteção dada a Bulger por um órgão governamental. Nesse sentido, talvez o grande personagem de Aliança do Crime seja o agente John Connolly, cujo fascínio por Bulger e pela vida que a amizade com o criminoso lhe proporciona, presente na expressão corporal autoconfiante e no olhar frágil de Joel Edgerton, chega a comover. Apesar de ser um grande filho da puta, Connolly representa também a fraqueza humana, o desejo por poder que, por vezes, só uma aliança com um demônio como Bulger pode proporcionar. A fusão entre pacto fáustico e lealdade das ruas que alicerça a relação entre os personagens torna Aliança do Crime um filme um tanto interessante, diferente do que nos acostumamos a ver no gênero recentemente. É um respiro bem-vindo, portanto, não só na desgastada carreira de Depp.


Aliança do Crime 
Black Mass, 2015
Scott Cooper

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Ponte dos Espiões



Em Ponte dos Espiões, Spielberg segue no caminho de Lincoln, seu belo (e um tanto subestimado) filme anterior. Frequentemente acusado, ao longo de sua carreira, de carregar excessivamente nas tintas do melodrama (como se isso fosse, por si só, um problema), aqui o diretor novamente flerta com o gênero, mas numa modalidade mais discreta: exatamente como Lincoln, Ponte dos Espiões é um drama político low profile, cheio de classe na construção calma, sem sobressaltos, da narrativa, em que tudo tem seu tempo para acontecer, e no apuro estético. É grande a semelhança entre os dois filmes no uso de espaços fechados, como quartos, tribunais e escritórios onde se desenrolam os bastidores do poder, e na forma de iluminar esses espaços, geralmente dominados pelas sombras, mas com entradas repentinas e expressivas da luz em cena.  

Lincoln e Ponte dos Espiões também estão próximos no conteúdo. Em ambos, a grande política (abolição da escravidão e Guerra Fria) é vista pelos olhos de personagens que, historicamente superlativos (sobretudo Abraham Lincoln), carregam valores do americano médio, definidores do que seria a verdadeira “alma americana”. É interessante como Spielberg consegue equilibrar esses dois aspectos: Lincoln e Jim Donovan são filmados pomposamente, como heróis quase míticos, mas seus gestos e boa parte das situações que vivem são prosaicas, mundanas – enquanto o presidente interpretado por Daniel Day-Lewis não resiste ao hábito de contar anedotas e é forçado a chafurdar na pequena política, em negociatas escusas para aprovar a lei que acabaria com a escravidão, Donovan passa quase toda a segunda parte de Ponte dos Espiões cansado e gripado, assoando o nariz e vez ou outra tendo um de seus cochilos interrompidos.

Isso é importante para entender o que Spielberg pretende dizer nos dois filmes. Se Clint Eastwood, o outro grande diretor em atividade interessado na mitologia americana, se mostra amargo e sombrio em suas representações dos heróis da nação (J. Edgar e Sniper Americano são exemplos mais recentes nesse sentido, mas toda sua releitura do western, que vai de O Estranho Sem Nome a Os Imperdoáveis, também pode ser lembrada), Spielberg, apesar de crítico, ainda parece crente na existência desses heróis, portadores de valores que mantêm intacto o que foi, um dia, o sonho americano. Nesse sentido, falar dos feitos de Donovan chega a ser um passo adiante para o diretor em relação a Lincoln, afinal, por mais que o presidente fosse mostrado em seu lado mais prosaico, ele continuava sendo um dos pais fundadores da América moderna, face presente no Monte Rushmore. Donovan, pelo contrário, é um herói anônimo, daqueles de quem passamos uma vida inteira sem ouvir falar e que são, para Spielberg, os verdadeiros construtores de seu país.

A matriz cinematográfica de Ponte dos Espiões é, como em Lincoln, John Ford (voltamos novamente ao jovem Abraham Lincoln de Henry Fonda em A Mocidade de Lincoln), mas também Frank Capra, com seu olhar profundamente otimista para a capacidade do americano médio de resolver problemas aparentemente insolúveis. Em tempos de profundo cinismo no cinema “sério”, mesmo o americano (cada vez mais na onda baixo-astral em que tudo entra pelo cano, para citar Leminski), é um prazer reencontrar Spielberg esbanjando elegância e sobriedade sem abrir mão dos valores morais que lhes são caros. 


Ponte dos Espiões 
Bridge of Spies, 2015
Steven Spielberg